Cemitério do Murundu, por Luiz Fernando Pinto

Solteiro por opção do destino, nos fins de semana batia cartão no bar do Bira Negão. João tirava seu sustento como jardineiro do cemitério do Murundu, entre um gole de café e as badaladas do sino da capela, João gostava de conversar com os amigos que fizera durante os quinze anos de cemitério.

Um dos mais queridos de João era o coronel Mauro Torres Frazão, um dos mais antigos moradores do Murundu. O coronel era um português respeitado na época do Império, que veio para o Brasil com a missão de servir à Família Real. Em um dia de desordem na capital, recebeu uma flechada dos índios Kaiowá. Lembra como se fosse hoje: o príncipe Pedro estava a cavalo, flertando com uma escrava que acabara de chegar ao porto, e o coronel, sempre atento, percebeu que o jovem estava em perigo. Foi quando avistou uma flecha indo em sua direção. Com o reflexo de uma raposa, o coronel se jogou na frente de Pedro, e adquiriu uma fratura na perna esquerda, que o impossibilitou de fazer o que mais gostava. Foi aposentado por invalidez, e passou o resto da vida recluso no norte do país, até falecer, vítima de depressão.

As conversas dos dois amigos duravam horas. João contava sobre a dificuldade de viver no Brasil quinhentos anos após a sua descoberta. O pequeno salário que recebia no árduo trabalho, mal dava para pagar as dívidas adquiridas nas Casas Bahia e comprar a cesta básica mensal para abastecer a despensa. Atualizava o coronel diariamente com noticias variadas do país, e este ficava pasmo, pois não acreditava nas atrocidades que João lhe contava.

O coronel pouco tem falado com João, ultimamente anda pensativo e abatido, e dizem que, após a noticia sobre a tragédia de Santa Maria, que João lhe contou na manhã de domingo, o coronel pouco aparece pelo bloco B do cemitério. Só foi visto fora do seu jazigo lá pelas sete, quando a senhora Dalva foi trocar a coroa de flores que fica ao lado da foto do coronel, logo acima da frase: “Aqui jaz Coronel Mauro Torres Frazão, um homem de fibra”.

Dona Dalva descobriu, quando pequena, o seu apreço por cemitério. Aos 7 anos pulava o muro do São João Batista para, com amigos, subir no pé de jambo. Foi em cima da árvore que Dalva se apaixonou pela primeira vez. O menino Chico foi seu amor platônico durante cinco anos. Dentre muitas paixões que passaram pela vida de dona Dalva, o mais cultivado foi o amor pelo cemitério. Este começou no São João Batista, passou pelo Jardim da Saudade, acostou-se pelo cemitério do Caju e, hoje, finca raízes no Murundu. Todo domingo dona Dalva circula pelos blocos do campo-santo distribuindo flores pelos jazigos do cemitério — assim como João, gostava das margaridas e dálias.

Lembro-me certa vez que João revelou a Dalva que estava apaixonado pela viúva Dolores, uma senhora de indumentárias pretas e chapéu de madame, que mal deixava para ver seu rosto. Uma vez ao mês ia visitar seu ex-marido, que faleceu de infarto na década de 1980. João ficava na cantina do Murundu assistindo cada passo de Dolores, que assim que terminava de visitar seu ex- marido passava na cantina para cumprimentar Seu João e tomar um gole de café. Sempre abatida e com poucas palavras, a viúva escondia de baixo das vestes uma morena bonita e sonhadora: imaginava-se entrando na igreja com um belo vestido de noiva ao som do coral da paróquia, realizando um sonho de menina. Às vezes achava possível a realização de tal sonho, porém, sempre se lembrava do ex-marido que faleceu justo no dia do casamento. Desde então, ela se contenta com as visitas feitas ao Murundu e com o grupo de oração da paróquia Santa Cecília.

João ficava mais tempo no cemitério do que em sua morada. Ele até que gostava, pois sua única companhia em casa era a velha cadeira de balanço herdada do avô, que morreu na guerra, carinhosamente apelidada de “Cansadinha”, e era nela que diariamente João lia o jornal, separava as noticias que contaria ao coronel e ainda guardava um tempo para pensar na amada Dolores. “Cansadinha” já sobreviveu a dezenas de reformas e reparos. João nega-se a desfazer da cadeira; utiliza o argumento de que alguém tem que tomar conta da casa enquanto ele está no cemitério.

João sempre teve apreço pelas flores, e são com elas que sonha em um dia presentear Dolores. Fica imaginando a viúva com um buquê de margaridas amarelas em mãos e sorrindo como forma de gratidão. No jardim do cemitério passa boa parte das suas manhãs regando as variadas flores, adora o perfume das orquídeas e admira a sua postura perante as outras flores. As orquídeas do Murundu são atenciosas e generosas, não é raro ver uma flor desfrutando de uma sombrinha improvisada pelas senhoras orquídeas. As margaridas de família numerosa chamam a atenção pela sua simplicidade e a forma unida como convivem no jardim. Os grandes girassóis ficam de prontidão, fazendo a segurança do jardim, nada passa despercebido para esses grandes olhos. A sensibilidade e a vivacidade das rosas brancas e vermelhas revelam a João um ambiente que destoa do lugar conhecido pela tristeza e morte. O jardim dá vida àquele pedaço de mundo aparentemente sem existência.

O calendário marca dia 2 de novembro, João foi pego várias vezes olhando para o relógio, o movimento no cemitério é grande. O coronel deve estar feliz, hoje recebeu a visita de vários universitários, enfim os acadêmicos vêm reconhecendo sua importância na história do país. Pela manhã, trocou algumas palavras com João, dissera que estava com saudades da terra natal. João o animou dizendo que hoje é um dia especial, irá presentear Dolores com o buquê de margaridas amarelas. O coronel desejou-lhe sorte. Lembrou-se de quando trocava cartas com a filha do fidalgo Juvêncio. Com o acidente, acabou perdendo o contato com a amada e, desde então, não conseguia pensar em outra mulher.

Os girassóis estão de prontidão, as rosas exalam um perfume que seduz a quem passa pelo jardim. A família de margaridas compõe o buquê nas mãos de João. Procura Dolores em meio à multidão; ela já deveria estar aqui. João veste o terno azul-marinho que herdou do avô junto com a cadeira “Cansadinha”. O tempo passa, esquece que está de relógio e solicita as horas a dona Dalva, que responde irritada. Ele mal ouve o que ela diz. Ao longe, João avista um chapéu de Madame passando pela entrada do cemitério, aproxima-se e confirma ser o de Dolores.

O cemitério do Murundu está à procura de um novo jardineiro. João, atualmente, divide a “Cansadinha” com Dolores, que passou a usar um vestido amarelo com estampa de margaridas. A despensa é abastecida com o lucro da floricultura, na qual João investiu com as economias guardadas durante anos de trabalho no Murundu: Floricultura Frazão. João fez questão de homenagear seu para sempre amigo coronel Frazão. Uma vez por semana passa no Murundu, toma um gole de café, atualiza o coronel e admira as orquídeas, rosas, margaridas e os grandes girassóis.

Assista aqui o curta Cemitério do Murundu, com direção de Victor Magrath.

Cemitério do Murundu from Victor Mello Magrath on Vimeo.

 

Luiz Fernando Pinto é quebradeiro da 2a edição da UQ.