“Cocô de rato vai levando” pela quebradeira Cristina Hare

(Crédito: Denise Kosta)

Texto escrito pela Quebradeira Cristina Hare

No tempo da nossa infância, antes da invasão dos evangélicos, a tradição ainda não tinha virado pecado.

Três irmãs!

Era fácil encher as bolsas de doces, nessa época em que, no ia de Cosme e Damião, quase toda casa no subúrbio distribuía saquinhos.

Minha mãe não nos deixava sair sozinhas. Medo de atropelamento, dizia, e então, compartilhava com a gente da caça ao tesouro.

O almoço nesse dia, dia mais esperado do que o Natal, era sempre sopa. Sopa, porque era fácil de engolir rápido, ansiosas por sairmos de novo em busca das guloseimas. Sopa, porque tinha sustância e além de alimentar, quebrava o enjoo dos tantos doces ingeridos.

No passado, havia o tal do “cartão”. Era uma espécie de vale-saquinho que nos fazia percorrer as ruas do bairro, cerca de uma semana antes da festa. Funcionava assim: você ganhava o cartão e estava garantido seu saquinho de doce no dia e hora marcados. Sim, ali constavam escritos a hora e o local para receber o doce. Era como um cartão de visitas e sempre tinha um desenhozinho dos santinhos no lado esquerdo, às vezes com e às vezes sem Doum. Eu sempre achava que Doum era injustiçado e não entendia o porquê dele não estar sempre nas representações.

Ao final do dia, a gente tinha muito doce. Quantidade essa que foi diminuindo com o passar dos anos.

Minha mãe arrumava os doces em potes, por categoria: só cocadas, só marias-moles, só doces-de-leite…Cocadas e suspiros acabavam primeiro e as geleias rolavam mais de três meses na geladeira. Chocolate acabava antes de chegar em casa, eram raros, só vinham nos saquinhos distribuídos pelo bicheiro ou pelos candidatos políticos.

Às vezes, para maior alegria da garotada, alguém distribuía brinquedos – bambolês, pipas, bolas – ou roupas. Ás vezes jogavam moeda “avanço”.

Lembro-me das mulheres com filharada descendo o morro com sacolas que sempre voltavam cheias.

Minha avó, para espanto geral de todos, distribuía ovos cozidos. Até hoje não sei o porquê. As crianças pegavam desconfiadas, mas logo percebiam que era um alívio no meio de tanto doce, mastigar algo salgado.

Com doze anos, corri pra pegar um saquinho e ouvi a mulher dizer “no ano que vem vou distribuir namorados”, referindo-se ao meu tamanho de maneira ofensiva. Eu era criança, apesar do tamanho. O simples fato de eu ter corrido pelo saquinho denotava isso.

Fiquei chateada, percebi que estava crescida e sofri antecipadamente, já pensando no ano seguinte…”Eu nunca mais vou poder pegar doce! Tô grande.” Só eu sei a tristeza que senti.

Até hoje, eu e minhas irmãs distribuímos doce. A nossa única promessa e tentar perpetuar a tradição. Nós não discriminamos tamanho.

Veio pegar? Leva!

E corre que ali tá dando, cocô de rato vai levando!

* Denise Kosta desenhou Doum em cada um destes saquinhos, entre Cosme e Damião…foram 100 saquinhos… (vide foto abaixo)

(Crédito: Denise Kosta)
(Crédito: Denise Kosta)

*Esse texto fiz sem nenhuma pretensão, a pedido da Ana Paula Lisboa, que estava coletando dados sobre o tema para uma apresentação. Em 27/9/2010 -Dia de São Cosme e São Damião , ela colocou as frases dos textos recebidos no Twitter.