No jacutá de preto velho, há uma festa de yaô! – por Carlo Alexandre

O Cais do Valongo é hoje considerado um dos mais importantes patrimônios da história invisibilizada vivida pelos africanos escravizados no Brasil. Ali jaz um monumento único e de importância incalculável. Como tal, simboliza sentimentos e as sensações sentidas a partir do conhecimento do passado.

Apenas para despertar o interesse sobre a palavra memória, vale saber que tem origem em memorial e remonta o nome da deusa grega Mnemosine (grego) ou Moneta (latin). Assim a memória deve ser sentida na materialização de objetos por exemplo, que então nos lembrariam ou fariam acordar a nostalgia ou “banzo” de algo que muitas vezes nem conhecemos ou vimos, só em fotos ou filmes.

Retornando ao Valongo pergunto, será que todos se emocionam ou entendem sua importância quando olham ou admiram o Cais? Pergunto porque tenho detectado sinais do desconhecimento do que aquilo representa, quando vez por outra alguém me pergunta: Onde fica? Cais do que? Ahh no porto .. é nunca fui pra aqueles lados não! Contudo, temos todos certeza que isso não acontece quando se pergunta algo a respeito da Praia de Copacabana, Ipanema, Pão de Açúcar ou do ex-maior estádio de futebol do mundo, o Maraca! Guardadas as devidas proporções de mídia e turismo sobre os citados pontos turísticos, vai por mim esse desinteresse e ignorância (de ignorar) tem outras origens!

Em outras palavras, aquela estrutura de pedras inclinadas e superpostas pode passar desapercebida aos olhos dos desavisados e incautos, que não se preparam devidamente para uma visita ao sítio arqueológico e seu entorno – o IPN, Jardim suspenso da Imperatriz e a Pedra do Sal, por exemplo. Digo assim, pois não é preciso muita pesquisa, apenas um mínimo de curiosidade para sacar que ali existe um conteúdo e significado, no mínimo interessante, para não dizer essencial aos que querem saber o que é ser carioca, aliás o que é ser Brasileiro. Pois é, como disse lá em cima, a memória não pode estar desconectada de sentimento e isso só acontece se estamos sensibilizados pela história e seus conteúdos.

Infelizmente essa não é a regra, pois a grande maioria, muitas vezes pelo apagamento sucessivo dos símbolos, preconceito ou ignorância, simplesmente sofrem de desidentificação crônica com a cultura e a memória africana do nosso país, que é onde quase tudo começou e se desdobrou no que somos hoje – incluindo-se ai o nosso jeito de andar, o que comemos pela manhã na “quitanda” (um nome africano) da esquina e grande parte das músicas que andamos assobiando por aí desde criança. Cá pra nós, quase tudo nasceu e/ou foi batizado na zona portuária do Rio e outros locais associados às culturas afro.

Mas o que eu quero dizer com tudo isso? Na verdade, uma metáfora para “na volta que o mundo deu, na volta que o mundo dá”, simplesmente agradecer ao Mestre Carlos Negreiros que no último sábado, dia 17, durante a Roda de Capoeira do Cais do Valongo, me fez ter uma certeza. Assistindo a palestra/oficina “Toque de Tambor” por ele conduzida, percebi o que pode parecer obvio para alguns, porém ainda uma necessária reflexão para outros: definitivamente a melhor forma de entender, aprender e se sentir pertencente à história e cultura afrobrasileira deve ser por uma experiência que envolva os diversos sentidos do nosso corpo e da alma. Em outras palavras, se você quer que alguém se aprofunde nos símbolos, porquês, mitos, sinais e memoriais do Cais do Valongo é preciso que esta pessoa seja encantada pela dimensão histórico-oral-rítmica-musical dos mestres dos saberes. Em síntese, a metodologia utilizada a muitos séculos pelos Griots africanos e Mestres afrobrasileiros, que através de seus conhecimentos milenares conseguem tocar não apenas os corações e corpos, mas também a razão dos que compartilham dessas vivências.

As Rodas dos Fazeres e Saberes do Cais do Valongo (oficinas e palestras), tem sido emblemática dentro desta proposta e a metodologia extremamente feliz de Carlos Negreiros, precisa ser utilizada pelo Estado, que deveria urgentemente olhar e multiplicar este formato e habilidade afrobrasileira de ensinar cultura e história, que acaba resultando em sensibilização e memória!

Em resumo, Negreiros e tantos outros mestres dos saberes deveriam ser chamados e contratados para cantar e contar o Brasil, sublinhando todas as virgulas, pontos e reticências com os sons dos ritmos afro, caboclos e nativos, todos embebidos de sabedoria e de múltiplas mensagens.

A rede pública de ensino alinhada à Lei 10639/03 deveriam propor diretrizes, onde nas capacitações, professores e alunos aprendessem com os mestres dos saberes e fazeres, que transmitiriam o saber que detêm e a didática que dominam. Se assim fosse a educação do Brasil produziria nas próximas gerações, os novos brasileiros que além de tocar, cantar, contar e dançar a nossa história, a viveriam e sentiriam orgulho e prazer em repassar este conhecimento aos filhos e netos.

Quem sabe assim, o Brasil finalmente olharia para seu umbigo Áfricano, o mesmo que liga o Cais do Valongo aos portos de Gorée (Senegal), Cacheu (Guiné-Bissau), Ajudá (Benin), Old Calabar (Nigéria), Loango e Luanda (Angola) mudando de uma vez por todas a perspectiva da educação para a de uma memória descolonizada e livre de preconceitos. Vale tentar!

>> na 24a Roda do Cais do Valongo, dia 21 de junho, a convidada especial será a Profa Dra. Hebe Mattos com a palestra: “Sob as Pedras do Cais – Tragédia e Milagre”

fotos: Maria Buzanovsky