Acabou quebrare*, por Leandro Souza

Que.brar (verbo transitivo, intransitivo e pronominal): Significa fazer(-se) em pedaços, dividir(-se) em partes, geralmente por ação de impacto ou violência; despedaçar; fragmentar; partir; rachar. Vem do latim crepare “estalar”, mesma raiz do verbo crepitar.

Curioso! Desde que entrei para a Universidade das Quebradas, o verbo “quebrar” foi resignificado tantas vezes, ganhou formas, cores e intensidades diferentes e agora, só agora, recorrendo ao dicionário, percebo que ele permanece o mesmo. Estranho? Com certeza não. É fácil perceber que em seis meses a mudança não se deu no verbo, mas em mim, em todos nós. Durante esses seis meses, quebrar significou romper fronteiras, derrubar barreiras, desacomodar(-se), mas também continua sendo a mesma descrição do dicionário e tudo graças ao latim crepare, que por sua vez, significa estalar. Es-ta-lar de dedos, de mãos, um estalar de vivências em comunhão.

E foi exatamente assim, como um estalo, um despertar, “por uma ação de impacto ou violência” – como disse o dicionário – que me reconheci quebradeiro, aqui e com vocês. E “ser quebradeiro” não é um título, é uma vocação, uma identidade. Quebradeiro não se forma – não existe diploma de quebradeiro, por exemplo – todos nós já nascemos quebradeiros, fomos predestinados a isto, é como se existisse um pacto natural de responsabilidade com as nossas quebradas junto com a nossa certidão de nascimento. Há muita gente lá fora que já atua como quebradeiro, só que ainda não se percebeu disso. Ainda! Já o mestre quebradeiro não, para esse sim é necessário estar aqui, este sim precisa partilhar seu território, desaguar impressões no diário, trocar vivências com outros quebradeiros, e por fim, merecer a titulação. E, honrarias à parte, ser mestre quebradeiro é uma titulação “de responsa”, de reconhecimento, de representatividade. Pois o mestre quebradeiro, nada mais é, que um quebradeiro que reconhece a força do seu papel social, um quebradeiro auto-descoberto, por assim dizer. E convenhamos, se um quebradeiro já é ousado por natureza, imagina um mestre quebradeiro? Mas não se enganem, do mesmo modo que o quebradeiro amplia o seu empoderamento ao se tornar mestre, crescem também – e junto com ele – as responsabilidades no papel social que cada um aqui tem a cumprir na sua quebrada. E creio que esse é um dos principais objetivos desses nossos encontros de terça, desse ritual partilhado aqui na Universidade das Quebradas.

Engraçado! Quando entrei aqui, muita gente lá fora me perguntava “o que é isso de Universidade das Quebradas?”, “o que vocês fazem?”, “como funciona?”, “paga pra entrar?”, enfim, questionamentos tão complexos quanto os nossos, que estamos aqui, vivenciando e partilhando de tudo isso. Nem eu que faço produção cultural e já corto um dobrado pra explicar meu curso, sei como fazer malabarismo suficiente e que dê conta de explicar o que acontece nessa sala. Se mal conseguimos explicar o que é uma quebrada, imagina uma universidade delas? Afinal de contas, até a lógica precipitada de que quebradeiro é aquele que nasce numa quebrada, passa a perder todo o sentido no decorrer desse curso, tendo em vista a diversidade de lugares, de experiências e saberes, partilhados aqui, entre nós e em cada aula. Talvez, para aproveitar o gancho do nome e despistar os questionamentos mais incisivos, podemos induzir que as Quebradas é um espaço em que se vive a conjugação do verbo partilhar e ponto final, ou melhor, partilhar e reticências…

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Por outro lado, pensando melhor, acho complicado e até desonesto reduzir a Universidade das Quebradas em uma síntese ou definição assertiva. Como explicar algo feito para vivenciar, partilhar com o outro, construir pontes, algo feito para ser tudo e nada ao mesmo tempo? As Quebradas é um processo infinitamente em processo que tem como combustível a potencialidade dos questionamentos e não a convicção de respostas e certezas. É uma zona de confronto (e das brabas!), pois aqui todo mundo é similar, todos partem de proximidades em comum, sejam estas marcadas na pele, no falar, no pensar, marcadas pelas quebradas que estão sendo defendidas em campo, seja esta quebrada o nosso bairro, cidade, estado ou país.

Em uma análise distanciada, vejo as quebradas como um terreno de desproporções, onde cada um faz da sua quebrada o que deseja que a sua quebrada seja para si, é a subjetividade em estado de glória. Dentro deste espaço, há os que vivem, os que vivenciam e os que só passam sem deixar registros, e não me peçam para apontar nessa sala quem aqui está em qual posição, pois nem nós mesmos sabemos o nosso grau de pertencimento a este lugar. Como eu disse antes, aqui não é lugar de certezas, mas de confrontos, questionamentos e também espaço de reflexão. Viemos todas as terças com o intuito de estar junto, de conhecer e se reconhecer nessa experiência com o outro.

Estar com vocês nesses seis meses de convivência foi uma grata surpresa e sinto que há muitos desdobramentos por vir e para agradecer daqui pra frente. Mais do que um espaço de reconhecimento, vejo que a Universidade das Quebradas também foi importante para a minha formação pessoal, como cidadão do mundo e itinerante de todas as quebradas e comunidades. E se comunidade é partilhar propósitos em comum, creio que aqui, mais do que em qualquer outro lugar, encontrei a dimensão tangível deste conceito, pois se na universidade eu me sentia diferente por ser da periferia e vice-versa, aqui, ao juntar as minhas duas realidades, pude me sentir em casa, trocando com vocês o que temos em comum, em unidade. Durante a nossa vivência não durou muito pra perceber que quebrado por aqui só o nome e a logomarca, o resto é união, no sentido mais amplificado do termo. Obrigado por me acolherem na baía de Guanabara e, em retribuição, saibam que a baía de Todos os Santos também é a quebrada de todos vocês. Levarei na mala as experiências e o carinho de todos, e espero reencontrá-los pelas quebradas da vida. Alô alô Rio de Janeiro, aquele abraço!

Gratidão!

Leandro Souza
Baiano e Quebradeiro

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* Título parafraseado do disco “Acabou Chorare” dos Novos Baianos (1972), cuja canção-título foi pura inspiração para a escrita deste texto.