Aula Inaugural de Heloisa Buarque de Hollanda na Letras

A professora e coordenadora do PACC Heloisa Buarque de Hollanda realizou a Aula Inaugural do primeiro semestre de 2014 na Faculdade de Letras (Auditório G-2), no dia 20 de fevereiro. A Aula teve como tema “Pesquisas sonhadas alto: como formei um universo teórico para trabalhar com as margens do cânone”.

 

Seria mentira eu dar uma aula ou conferência aqui como se nada estivesse acontecendo. É mais sério do que uma aula. Estou voltando à Letras e sendo recebida  com pompa e circunstância. Portanto esse é um momento único para mim. E por isso eu agradeço emocionada às artífices desse convite que suspeito terem sido Eleonora e Martha, amigas e parceiras. O que vou fazer aqui é ouvir o meu desejo hoje. E meu desejo é contar o que aconteceu desde que saí daqui, os desafios que enfrentei, as pesquisas que sonhei,  as perguntas que coloquei e minha ligação quase histérica com aquelas que não consegui responder.

Na realidade, nada de muito especial  aconteceu depois que sai de Letras, indo para Comunicação, passando  pelo FCC e chegando hoje aqui de volta. Mas como hoje aqui pretendo me reapresentar para alguns e me apresentar para os outros,  aqueles com os quais não convivi no passado, é importante o relato desses caminhos.  Escolhi para isso a persona do narrador viajante, o marinheiro Benjaminiano. Tenho certeza de que todos aqui se lembram do ensaio O Narrador e da defesa ferrenha que o autor faz de nossa faculdade de intercambiar experiências. O ensaio fechava uma das partes assim: “o dom do narrador é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira”.

Por uma questão de tempo e oportunidade, abro mão da minha dignidade e vou contar apenas uma fatia da minha vida, aquela que pertence à minha origem em Letras. E o faço por escrito, coisa que não pratico há tempos o que mostra a importância desse momento para mim.

Por motivo que a esta altura já esqueci, escolhi e me graduei em Letras Clássicas. Durante o curso li e reli as obras de praxe do universo greco-latino, mergulhando sem máscara nem bala de oxigênio, – portanto passível de falta de ar –, num mundo meio mágico e muito magnético que é a literatura e a poesia clássicas. Foi esse universo que fez minha cabeça e me inoculou com uma ideia de literatura que não se identifica com àquela que experimentamos hoje, a literatura no sentido moderno do termo.

O caso da Ilíada e Odisseia, para pegar apenas um exemplo óbvio, já coloca de imediato, o susto com a figura e com o valor do autor, função estruturante da literatura como a percebemos hoje. Seria Homero um intérprete (rapsodo) ou um autor? Como avaliar a autenticidade na criação épica se ela tem todas as características de um remix de mitos e lendas? E o caso das funções da poesia, ainda mais complexas deste ponto de vista? Como proceder criticamente – trazendo nossas questões e dores atuais de interpretação – diante de textos como esses? Naquela época – de estudante de Letras Clássicas – nenhuma destas questões ainda me perseguia. Mas certamente gravaram-se de forma definitiva no meu DNA teórico. Mas no meu tempo de estudante de Letras Clássicas, havia uma variável forte e que competia com o mundo greco-latino: estávamos na década de 60. Então, os sonhos e o forte input político dos 60 me sequestraram temporariamente e adiaram por um bom tempo estas questões. Me atirei num cenário de euforia, rebeldia e utopias que terminaram, por me arrastar quase à força para a literatura brasileira, onde eu via, na época – é claro –  um potencial crítico sanguinário.

Entrei em Letras como professora de literatura brasileira em 1965, assistente de Afrânio Coutinho, meu orientador no mestrado e doutorado.

Minha tese de mestrado foi claramente um rito de passagem entre meus estudos clássicos e o Brasil dos anos 60. Escolhi como objeto Macunaíma – o deus amazônico da mentira – a mais ambígua, híbrida, apaixonada e equilibrista obra da literatura brasileira. Em Macunaíma não encontrei nem mesmo um romance ou uma novela, para trabalhar em paz e com segurança, mas uma rapsódia, feita de fragmentos e reordenações, tradução e traições múltiplas. Macunaíma inaugurou minha falta de chão. Eu tinha, diante de mim, para fazer uma dissertação acadêmica, uma narrativa e um herói que nunca se definiam, ou melhor – e mais sensacional ainda – um texto que adia indefinidamente sua definição. O que me interessou em Macunaíma e tem a ver com minha herança dos estudos clássicos, foi sua estupenda costura e articulação quase randômica dos mitos amazônicos colhidos – disciplinadamente e durante anos na Venezuela, Brasil e Guiana Inglesa – pelo etnólogo alemão, Theodor Koch Grunberg.

Fui atraída pelo lado sinfônico, dialógico, e digamos, numa ousadia irresponsável, anti-autoral de Mario de Andrade. Não deixei também de lado o filme de Joaquim Pedro, releitura política com forte acento conjuntural e transgressor da rapsódia modernista. Eu havia me metido numa sequência de adaptações, traduções, deslizes de linguagens, imprecisões de sentido que me apaixonaram e me fizeram perder definitivamente meu chão e meu rumo.

Dessa dissertação, levei para minha vida,  as questões da tradução,  do potencial produtivo do caos e da imprecisão. Macunaíma era incrivelmente inaugural. Era uma obra,  cujo autor se apresenta como apenas um articulador de discursos.   Uma obra que define o caráter brasileiro a partir de um personagem venezuelano. Uma narrativa que dispensa as convenções de espaço e tempo em favor da simultaneidade de vozes e universos simbólicos.

Óbvio que nesse momento meu coração foi invadido por 3 teóricos, que me deram um mínimo de rumo e de juízo: Benjamin, Barthes e Bakthin. Foi o meu BBB teórico inicial e meus ex-alunos aqui presentes podem dar testemunho como foram massacrados pela leitura obsessiva desses 3 BBBs.

No doutorado, meu orientador foi novamente Afrânio Coutinho – e hoje vejo que sem a cumplicidade dele talvez meus caminhos não seriam esses que trilhei. Apoiada pelo Afrânio, adentrei para sempre nas margens imprecisas do cânone com a tese Impressões de Viagem, escrita como uma quase biografia impressionista. O tema dessa vez foi a poesia marginal que se afirmava na época como uma poesia antiliterária,  improvisada e descartável. A reação à tese não muito prazerosa. Foi bem negativa o que confirmou o veto acadêmico a tudo aquilo que fugisse ao… específico literário. Consegui dar foco e definir com mais contornos a pergunta que permeia tudo o que fiz desde então. A pergunta  “O que é literatura?” havia se instalado na minha agenda teórica para sempre.

Hoje parece estranho, mas naquela época, anos 70, quando a pós-graduação em Letras apenas engatinhava, todo um  campo empírico de pesquisa que me atraia era vetado às teses ou pesquisas acadêmicas. Não eram, na época, dignos de estudo os diários, correspondências, biografias ou a literatura vista sob a ótica das relação de gênero, ainda conhecida como “literatura de mulheres”. A isto se chamava de literatura menor mais afeita aos estudos de comunicação, ou como fonte interessante para disciplinas como história ou antropologia. Esse era o caso da poesia marginal, tema de meu doutorado e que Afrânio legitimou com sua orientação. Fui para a defesa pensando que a banca fosse arguir nessa direção, Mas minha arguição não chegou nem lá. A banca parou na primeira frase da tese que era assim ”Ainda me lembro do calor dos anos 60” e elaborou grandes textos sobre a inadequação de uma perspectiva impressionista num trabalho acadêmico.  Dessa vez,   às questões que Macunaíma havia me trazido, agreguei a importância de um estudo cuidadoso daquilo que estava sendo recusado como literatura.

Foi um alívio quando li uma entrevista de Mikhail Bakhtin sobre os impasses do formalismo russo, para a revista russa Novi Mir, dada em 1972. Nessa entrevista, Bakhtin criticava severamente a ênfase que vinha sendo dada à busca das especificidades da literatura, preterindo as questões da interdependência das várias áreas da produção cultural. Bakhtin reforçava sua crítica ao formalismo russo, afirmando ainda que a ausência de  articulações mais concretas entre a literatura e o contexto global da cultura estaria promovendo a marginalização da própria ideia de literatura.

Ainda nessa entrevista, Bakthin chamou atenção para a flutuação histórica das fronteiras das áreas da produção cultural e como a vida cultural mais intensa e produtiva ocorria sempre nas fronteiras e não nos espaços onde estas áreas tornam-se encapsuladas em sua própria especificidade.[1]

Foram vários campos de pesquisa que persegui, desenhados com essa convicção em mente. Foi o caso dos estudos feministas que desenvolvi nos anos 80, bastante baseada no trabalho epistemológico de Sandra Harding que articulou na área da ciência, o conceito de experiência como categoria de análise, que demonstra rigorosa e cientificamente num tour de force teórico apaixonante, ou o texto lindo de Maria Odila Silva Dias, historiadora da USP e herdeira de Sergio Buarque de quem foi assistente até a morte, quando fala de como potencializar a instabilidade das categorias nos estudos feministas. Nos anos 80, a emergência dos estudos de gênero nas  ciências , na psicanálise, teologia, história e letras foi um momento de alto impacto epistemológico que acelerou a desestabilização dos paradigmas modernos da segunda metade do século XX. Viver esse momento foi de uma riqueza absurda. Era participar de numa aventura teórica irrecusável. Uma aventura de desconstrução (com o perdão da palavra) das linguagens e sistemas de poder, guiada , muitas vezes, pelo pensamento de dois teóricos que foram fundamentais para as teorias feministas: Foucault e mais decisivamente ainda de Derrida.  Foram quase 20 anos dedicada aos estudos de gênero e étnicos, sempre fiel à observação das bordas, dos horizontes imprecisos. E a cada nova investida, a pergunta O que é literatura? se recolocava.

Lidando com a poesia contracultural, com os gêneros considerados menores, ou com a literatura da periferia e a literatura digital que são os focos atuais de meu trabalho,  e me encantando cada vez mais com eles, eu não conseguia mais aceitar de uma ideia única de literatura.  Mas como lidar praticamente com isso? Lembrei de Barthes que disse uma coisa genial: “sempre consigo sair de um embaraço intelectual por uma interrogação dirigida ao meu prazer.” Foi o que fiz.

Me muni de um orelhão, abandonei no caminho e deixei pra trás minha objetividade como havia feito Macunaíma com sua consciência e tentei ouvir muito, prazerosamente, compulsivamente. Deixei meus objetos falarem alto, e investi nas afinidades eletivas da minha memória teórica. Eram muitas vozes que se confundiam e se harmonizavam no meu projeto de atenção máxima – ainda que flutuante – de escuta do outro. Era uma mistura de objetos e de sujeitos de pesquisa, de inputs teóricos e de desejos. Na minha mesa, uma nuvem de tags me conduzia. Enquanto lia o Manifesto da Antropofagia Periférica , do poeta Sergio Vaz , um cover radical do Manifesto de Oswald de Andrade se espalhando barulhento pelas ruas das periferias de SP, ou quando me via viciada nos sites de fã fiction onde milhares de adolescentes, agrupados em comunidades criativas, reescreviam e reinventavam os textos Machado de Assis,  para mim a grande novidade das práticas literárias da internet. Eu tentava associá-las às questões que me perturbavam: literatura, fronteiras, autenticidade, comunidades estratégicas, autoria, tradução, tradição, poder, exclusão, alteridade e ficava perturbada com voz de Derrida que não deixava em paz dizendo: “a literatura é a coisa mais interessante do mundo, talvez mais interessante que o mundo”. Eu adorava, mas ao mesmo tempo sabia que não estava entendendo completamente o que Derrida estava querendo dizer e me abrigava em Barthes, menos abstrato, explicando a literatura como o único escape para enfrentar as formas de poder da linguagem: ele dizia charmosíssimo: “essa trapaça salutar, essa esquiva que eu chamo literatura”.

Ao mesmo tempo, estudando e tentando entender a natureza da linguagem da web, T. S. Eliot aparecia do nada com sua sacada pós-moderna: “Poetas imaturos imitam, os maduros roubam”, mas vinha acompanhado de Virginia Woolf, representando nessa confusão a objetividade que só as mulheres têm. Dizia ela com autoridade:  “Uma mulher deve ter dinheiro e um quarto só dela se quer escrever ficção” .  Não sei porquê, mas nessa hora me vinha uma saudade danada do Cacaso que aparecia em plena forma me chamando atenção para a pouca/muita  importância da poesia com um versinho típico de sua ironia poética: “passou um poeminha voando, ou foi uma gaivota?”

Confusa, mas atenta, tento aprofundar a questão da alteridade, do diferendo derridadiano, um conceito que foi precioso par mim e que já tinha sido antecipado há tempos na época em que mergulhei na imaginação dialógica de Bakhtin, da qual me ficou uma citação que nunca abandonei: “Vivo num mundo de palavras do outro”. Essa ideia voltava & voltava. Eu a encontrava também na poesia, no versos de Gullar no lindo Traduzir-se quando escreve:  “Uma parte de mim é todo mundo”…  e em Rimbaud  que radicalizava em versos: “Je est un autre”.

E as vozes prosseguiam até serem interrompidas por Mario de Andrade que retornava cheio de razão fazendo uma autocrítica feroz de sua atuação aristocrática como modernista em 22. O usei vida a fora como um sinal de alerta sempre piscando.

Com a cabeça meio zonza,  fui atrás do bom e velho Marx que me deu uma dica decisiva: em caso de perigo, historicize!!! E assim, entre tags que me inspiravam e a fé no valor da História, – chave de interpretação marxista – que enfrentei as duas potências emergentes que se configuravam no horizonte do século XXI: a cultura da periferia e a cultura digital.

Logo de cara a literatura hospedada na internet me trouxe de volta e em primeiro plano a questão da autoria e das convenções literárias que eu havia passado meio batido nos meus tempos de letras clássicas. Entrei no mundo dos novos formatos narrativos, da criação de universos em detrimento de enredos, do deslizamento “natural”  do autor entre gêneros de toda a espécie, da presença efetiva do leitor que agora se vê como curador, e, principalmente, da formas de autoria flexíveis, que fariam a felicidade do meu mestre Bakhtin que infelizmente não está curtindo essas reconfigurações radicais nos territórios das lógicas e dos valores da literatura.

É importante eu dar uma parada aqui e sublinhar uma observação: não penso, nem estou dizendo nada que posso lembrar a ideia de que a literatura, tal como a experimentamos hoje, está decadente ou mesmo que corra o risco de se transformar estruturalmente por conta das novas práticas literárias da web. Ao contrário, acho que, como, no caso das artes plásticas diante do surgimento da fotografia, a pintura se libertou do pesado compromisso de registar a realidade e se permitiu partir para o impressionismo e para a grande arte moderna, para dar um único exemplo entres tantos possíveis que lidam com a chegada de novas tecnologias no campo das artes. Mas reconhecer a possibilidade de um horizonte de crescimento da arte literária, não pode minimizar o interesse que desperta esse imenso laboratório experimental da palavra em plena ebulição no universo da web e reconhecer que provavelmente estamos assistindo ao nascimento de um novo gênero narrativo e expressivo ainda não nomeado.

Mas o que mais me pegou nesse novo universo digital foi mesmo a questão da autoria & da autenticidade. Hoje essa é uma questão prioritária no direito (Creative Commons), mas começa a trazer uma certa inquietação no nosso campo de letras.

Lembrando do meu compromisso com a perspectiva historicizante,  corri atrás da arqueologia da própria idéia de autoria e pude ver a fragilidade do DNA dessa ideia.

Estudei as leis Copyright (inglês) e do Droit D’auteur (frança) e as milhares de ações judiciais em torno do direito privado e do direito publico em relação às obras literárias. Se acompanharmos no tempo podemos ver claramente uma linha cristalina e reta que mantém essa discussão desde o surgimento da função-autor – a genial insight de Foucault sobre a invenção da autoria . Podemos ver isso tanto no debate público acompanhando a história judicial dos direitos autorais ou nas antecipações, desde os anos 60, à nossa crise de hoje pelos inúmeros escritos teóricos a respeito da desestabilização ou da morte do autor e das desestalizações da ontologia da literatura tal como foi conformada pela experiência moderna.

Foi com assim também que me aproximei da literatura da periferia, ou literatura marginal, que me trazia de volta a lembrança da poesia marginal que foi onde, nos idos dos 70, essa pergunta se consolidou na minha agenda de pesquisa.

Se a ideia de autor posta em destaque pela criação na web, é um ponto crucial de preocupação para mim hoje, a literatura de periferia me trouxe de volta a questão do poder, repaginada, me exigiu a redefinição de meu papel como intelectual. Como lidar com essa literatura que vem de fora, rouca, potente, que percebe a palavra como fonte de poder, que traz um projeto transformador explícito e bem diferente da literatura política como a conheço, que coloca na mesa as figuras do artista cidadão e de um novo leitor responsável pelo destino de sua comunidade, que tem um idioma próprio, uma levada desconhecida, um ritmo sincopado  que ousa usar a literatura não mais como expressão de uma subjetividade individual mas como recurso de inclusão social e geração de renda , mexendo nos valores e na própria função social da criação literária e que, por cima, ainda quer “arrombar o cânone”, entrar e ser reconhecida como literatura com L maiúsculo na série literária?

Não havia outra saída a não ser abrir mão de meu papel pedagógico de intelectual política dos 60 e descobrir novas formas de me colocar como interlocutora dessa nova palavra. Uma bela autocrítica caiu bem nessa hora. Não era mais o caso do intelectual ao “lado do povo”, que irritou Benjamin na época do nazismo nem era o caso do intelectual revolucionário e libertário dos anos 60 que queria moldar o mundo com sua imaginação, nem ainda do intelectual mediador e negociador das ONGS dos anos 80. Eu sentia que as tanto as figuras do intelectual orgânico quanto do intelectual tradicional gramnscianos estavam chegando ao fim. Foi nesse momento que percebi a militância estava surgindo como fundamental na minha trajetória.

Tentei várias frentes à procura de minha posição nesse novo campo de forças: uma experiência editorial criando e conduzindo a Coleção Tramas Urbanas – na qual os protagonistas na cena cultural periférica narravam suas experiências de próprio punho, e onde nos encontrávamos na disputa em torno do “erro” (sensacional); testei também curadorias compartilhadas com artistas da periferia nas Exposições Estética da Periferia, onde me vi naufragando em preconceitos 60’s, e descobrindo muito lentamente o trabalho sistêmico com a biodiversidade de fazeres e saberes como instrumento político e de produção de conhecimento. Investi nela. E redescobri tardiamente a importância um elo de minhas preocupações que ainda não tinha se configurado para mim como objeto de pesquisa, um objeto que eu sempre detestei e amei com o mesmo vigor, a Universidade como bem público. Na minha cabeça duas perguntas começaram a se misturar de forma indissociável. Percebi a fragilidade da questão o que é a literatura e me amarrei na potência da pergunta o que é a universidade.

Não resisti e criei um projeto de extensão ao contrário, ou seja, uma extensão de fora para dentro, a Universidade das Quebradas. E constituímos um laboratório com formas alternativas de pesquisa, de acesso às diversas forma do conhecimento e de formação dialógica. Passei a rever sistematicamente a ideia de uma monocultura do saber e de uma hegemonia da ciência moderna e da alta cultura e me concentrar na questão da legitimidade dos saberes marginalizados por essa mesma hegemonia. Para isso foquei na leitura dos estudos de Guatarri e Boaventura que formatavam a noção de ecologia dos saberes que propõe uma revolução epistemológica dentro da Universidade.

Tentamos criar uma comunidade epistêmica mais ampla que transformasse a o espaço público da universidade num espaço de interconhecimento onde os cidadãos e os grupos sociais possam intervir subvertendo a posição passiva de estudantes. Para isso era necessário a reorientação solidária universidade-sociedade reforçando um dos mais importantes direitos desse início de século que é o  direito de ser ator. Ou , como diz Hanna Arendt: o direito de ter direitos que me parece que é o que é reivindicado hoje nas ruas.  E para isso é preciso muita imaginação epistemológica e muita imaginação democrática. Essa história não acabou. Pelo contrário sinto que estou recomeçando como nos idos de 1965 quando comecei a dar aulas aqui em Letras. Algumas diferenças existem. Estou muito mais velha, aposentada (à força, confesso) , com menos hormônios, menos euforia, mas sinto que com muita garra, uma garra diferente que se traduz, digamos,  num apaziguamento na minha capacidade de agir. Descobri com Negri também um paradoxo que consola: “na velhice é possível viver mais”.

É assim que chego aqui, com uma vontade enorme de trabalhar, inventar, ficar de bobeira e agregar todos vocês na minha nova sala lindíssima do PACC  que Martha e Eleonora inventaram. Obrigada.

RJ, 20/02/2014

Heloisa Buarque de Hollanda


[1] “Response to a Question from Novi Mir Editorial Staff” in Speech Genres & Other Late Essays. org. Caryl Emerson e Michael Holquist. University of Texas Press, 1987.

 

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