Dois textos de Denise Lima de Araújo para dialogar com as aulas do dia 12 de novembro

Transversando com Milton Santos e Roberto DaMatta

Em 2002, o doutor em geografia Milton Santos confrontou a hipocrisia da “igualdade racial brasileira” com dados estatísticos (na qual as pesquisas apontavam que entre os mais pobres 31% são brancos e 69% são negros) que refletem a sorrateira segregação imposta aos negros após a abolição da escravatura.

Como o trabalho do negro, desde o Brasil colônia, sempre foi essencial à manutenção do bem-estar ocioso das elites, foi firmado um pacto implícito de gestão social dessa classe (“inferior” e “de fora”) sob uma moral conservadora da desigualdade, iniciando pela educação (ou a ausência de). Arraigadas convicções escravocratas criaram estereótipos sobre os negros (burro, ladrão, vagabundo, libidinoso, entre outros) que, ainda hoje, ultrapassam os limites do simbólico e recaem sobre todos os aspectos das relações sociais nacionais.

O discurso dominante desdenha as manifestações de inconformidade como sendo fruto de um complexo de inferioridade sem justificativa, já que a doutrinação oficial da massa brasileira propaga nas mídias hegemônicas que, no seio da “Pátria Mãe Idolatrada não existe acolhimento de práticas discriminatórias ou preconceituosas”. Porém, todas as políticas sociais flertam, desavergonhadamente, com o assistencialismo paralisante. O que perpetua a exclusão que elas deveriam combater, por meio de forte investimento em uma educação de qualidade acessível para todos.

O antropólogo Roberto DaMatta, em 1979, teorizava a origem do dilema brasileiro na oscilação entre o mundo das leis universais e do universo das relações pessoais, onde a rígida hierarquia social é reforçada nos rituais da vida cotidiana, distinguindo “indivíduos” e “pessoas”. A pessoa tem uma rede social disponível que lhe permite burlar a lei conforme lhe for conveniente, já o indivíduo (leia-se marginalizado) tem que se curvar à perversidade das regras universais, pois sua rede social é muito limitada. A impermeabilização social começa pelo círculo educacional ao qual o cidadão está sujeito.

Conclui-se que construir identidade passa pela herança cultural (duramente aprendida, recontada e inventada no cotidiano, com valor reconhecido socialmente) e luta contra as distâncias extremas entre classes sociais: a estratificação semi-impermeável entre elas, as dificuldades de adaptação ao se “subir” de uma categoria à outra e o processo de distinção social. Um processo que leva tempo e é conquistado com ação e reação.

 

 

Resistir pela construção de identidade

Refletindo sobre a formação cultural brasileira, utilizando a máxima de Néstor Garcia Canclini que diz que “identidade é uma construção que se narra”, percebe-se que as bases históricas que deram conta de delimitar cada cultura pelos seus conflitos, suas façanhas por conquista de territórios ou mesmo da liberdade, construíram uma “retórica narrativa” repleta de heróis (?) e acontecimentos coletivos. O rádio e o cinema atuaram como modelo para a nação, conectando regiões afastadas e acelerando a modernização de diversos países mal saídos da condição de escravocratas e permitiram que ocorresse a integração nacional, pela unificação dos padrões de consumo, a “serialização inclusiva” e a homogeneização dos mercados internos.

No caso brasileiro, disseminou uma ideia cosmopolita mimetizando Paris, no início do século XX e o American Way of Life, no pós-guerra, em detrimento de suas bases ruralistas, relegadas quase à vergonha. O dominador culto citadino ditava as normas de vida na cidade, dominando culturalmente migrantes e imigrantes.

Porém, teorizar a identidade cultural de uma Nação fez sentido (em contextos políticos e econômicos) até o advento da “globalização”, uma vez que as análises teóricas davam conta de onde um povo começava e outro terminava, pelas suas diferenças. Com o aumento da mobilidade das pessoas entre os continentes, a multicultura presente nos seios das famílias e o comércio transcontinental, é cada vez maior a apropriação de um povo pelo outro, levando os teóricos a passarem a estudar e teorizar sobre culturas híbridas.

As fronteiras dos sistemas culturais amalgamaram-se, cruzando e interpenetrando seus limites: “a identidade, mesmo em amplos setores populares, é poliglota, multiétnica, migrante, feita com elementos mesclados de várias culturas”.

A produção é local para consumo global, de uma forma desterritorializada. O cinema é um exemplo claro disso, as produções tem que colocar seus “produtos” não só nas salas de exibição, para recuperar valores investidos. É necessário participar de festivais (nacionais e internacionais) como forma de divulgação, multiplicar-se em CD, DVD, roupas e acessórios, ser veiculado na TV convencional e à cabo.

Atualmente, discutir identidades é uma tarefa interdisciplinar na qual os termos multimídia e multicontextualismo são indispensáveis para a manutenção das identidades nacionais e locais sem se tornar o ritual monótono e repetitivo dos fundamentalistas, e sim uma coprodução incessante, em que pesem as desigualdades de agentes e poderes envolvidos. No espaço histórico-territorial os efeitos da globalização são menos sentidos pelo menor rendimento proporcionado aos investidores e à maior inércia simbólica, dada a ampla documentação e testemunhal de cada povo.

Nos meios de comunicação de massa, os países periféricos latinos tem a sua dependência em relação à produção americana acentuada e somente nos meios das tecnologias de informação (computador, satélite, rede óptica, etc) há o enfraquecimento da identidade nacional e regional, pelo amplo alcance de seus produtos e expressiva lucratividade. Por exemplo, os jogos japoneses estilizaram os traços étnicos de seus heróis para penetrar em qualquer mercado, comprovando a “subordinação da iconografia dos entretenimentos a códigos não localizados”.

Os conflitos gerados pela globalização deixam perceber que é uma falácia pensar que o processo de hibridização é passivo e confortável. As formas de resistência é que estão mais sofisticadas, articuladas e informadas a exemplo dos saraus suburbanos e da literatura marginal. “A identidade é teatro e é política, é representação e ação”.

 

  Foto: Beá Meira